Jogar videogame não é tão simples quanto parece. Não basta apenas “dar o play”, aprender alguns comandos e se divertir com sucesso. Você terá dificuldades, perderá “vidas” e provavelmente precisará de ajudas externas - uma pesquisa on-line, algumas dicas de amigos e talvez até investimentos em recursos extra. Mas, com esforço e o passar do tempo, tudo pode ficar mais simples. Você passará de fases com facilidade e atingirá o objetivo.
Empreender não é tão diferente quanto parece, assim como empreender com foco em impacto socioambiental positivo. Também não basta ter uma boa ideia e começar. É preciso ir além. Buscar preparo e ajuda para superar as “fases”. Foi assim que os jovens Rafael Nasper Silva e Vinnicius Rodrigo conseguiram avançar com suas startups relacionadas a jogos eletrônicos, Mangrove e Cordel, respectivamente. Eles descobriram os segredos dos “jogos” com dicas e recursos que vieram do British Council, através do programa DICE (Developing Inclusive and Creative Economies). Foi a “vida extra” que eles precisavam para chegar mais longe e causar impacto na sociedade, com lições sobre preservação do meio ambiente e inclusão digital.
Fase 1: Os jogos
A chave para transformar as ideias em realidade foi acessar as dicas e os recursos oferecidos pelo programa DICE. O jogo de Rafael começou com uma preocupação ambiental. Ele e os amigos Brian Thomaz e Francian Pinheiro, moradores de Recife (PE), desenvolveram o projeto relacionado a um problema local. “Uma coisa que víamos em comum era a questão da sustentabilidade, que não era feita aqui no bairro”, conta o desenvolvedor, se referindo à falta de conhecimento da população sobre preservação ambiental.
Mas falar de meio ambiente nem sempre é atrativo para o principal público dos jogos de videogame, os jovens. Então, Rafael e Brian tiveram uma ideia que serviu como uma nova energia para eles no jogo do empreendedorismo: incluir o movimento cultural Manguebeat na temática do jogo. A música de Chico Science, cantor que foi o principal expoente desse movimento na década de 1990, combinou bem com a ideia. “A primeira versão do jogo chama bastante atenção justamente pela música e pela representatividade cultural. Então, as pessoas, quando são atraídas para o jogo devido à questão do Manguebeat, do movimento, da música, jogam e percebem a responsabilidade do jogo, da questão ambiental”, destaca Rafael.
Portanto, foi assim que surgiu o Mangue & Beach, jogo no qual um personagem com as características de Chico Science precisa superar obstáculos relacionados ao tema de preservação ambiental. Tudo isso ao som de “Manguetown” (1996), uma das principais canções da Nação Zumbi, banda liderada por Science.
Chico Science e o movimento Manguebeat
Francisco de Assis França (1966-1997), também conhecido como Chico Science, foi um músico e compositor brasileiro, nascido em Olinda (Pernambuco). Ele foi um dos principais nomes do movimento Manguebeat na década de 1990, além de ter sido líder da banda Chico Science & Nação Zumbi, onde gravou os discos Da lama ao caos (1994) e Afrociberdelia (1996). É considerado pela crítica especializada um dos principais artistas da música brasileira.
O Manguebeat é um movimento de contracultura que surgiu em Recife (Pernambuco), em meados de 1991. Sua constituição artística deriva do cancioneiro regional pernambucano, do rock, do maracatu, do hip hop, da música eletrônica e do funk. Algumas das principais bandas do gênero são: Mundo Livre S/A, Chico Science & Nação Zumbi, Sheik Tosado, Mestre Ambrósio, DJ Dolores, Comadre Fulozinha.
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Já o “jogo” de Vinnicius Rodrigo começou com a leitura de um livro na escola. A adaptação em cordel de O Pequeno Príncipe, feita por Josué Limeira e ilustrada por Vladimir Barros, inspirou a criação do jogo O Pequeno Cabra da Peste, no qual um garoto enfrenta desafios típicos do sertão para proteger uma flor.
Oito jovens participaram do desenvolvimento do game. E eles tiveram uma ideia de grande potencial, pois, o livro era um facilitador para chamar atenção, abrir portas e executar o projeto. Mas faltava algo importante: o conhecimento sobre como empreender. “Ainda não tínhamos tanta estrutura em aspectos de empreendimento. Afinal, como conseguiríamos desenvolver aquele jogo de forma que conseguíssemos trabalhar questões de Economia Criativa? Nesse aspecto, sentimos muita ausência”, conta Vinnicius, quando perguntado sobre quais eram as maiores dificuldades para desenvolver uma startup e aumentar o impacto social.
E foi justamente nesse momento que surgiu o DICE para ajudar esses projetos a irem para a próxima fase.
Fase 2: O impacto do DICE
Os empreendimentos de Rafael e Vinnicius cresceram com o projeto Ressignifica, que tem apoio do British Council e nasceu da parceria entre Porto Digital (parque tecnológico localizado em Recife) e a Signifier (consultoria britânica que apoia a diversidade em organizações culturais e criativas). Marcos Primo, coordenador do Ressignifica, explicou qual foi o diferencial para que Mangrove e Cordel se destacassem: “Mapeamos esses dois projetos, com origens diferentes, e eles foram passando por todas etapas. Esses grupos, diferente de outros, conseguiram ver como uma grande oportunidade de negócio, não só como uma formação. E conseguiram deslanchar, se tornando startups”.
Rafael entende que a incubação no Porto Digital foi um “divisor de águas” para o crescimento da empresa dele. “Não tínhamos a mínima noção de como funcionava esse ambiente de startups de tecnologia e, de repente, já estávamos lá inseridos em outro ecossistema”.
Vinnicius também admite que tinha poucas informações sobre o setor de startups e até desconhecia o termo Economia Criativa. O termo se refere a um conjunto de atividades econômicas relacionadas às habilidades intelectuais e inovadoras da sociedade. Trata-se da fusão entre a economia, a ciência que regula bens e serviços, com a criatividade, capacidade de criar algo novo ou transformar algo existente.
Ter essa visão empreendedora transformou os projetos. O Mangue & Beach está virando um jogo em 3D, bem diferente da primeira versão, que tinha uma estética retrô. E isso está sendo feito com recursos de alta qualidade. “Temos computadores de ponta para trabalhar e um lugar para desenvolvermos o produto. Então, todos os dias, à tarde e à noite, estamos trabalhando no jogo e o desenvolvendo. A previsão é entregá-lo no final de 2021”, conta Rafael.
Já Vinnicius mudou o foco da empresa. Ao levar o jogo para instituições de ensino, ele percebeu uma oportunidade: passou a criar soluções tecnológicas para escolas. E, assim, aprenderam formas de fazer esses projetos impactarem mais pessoas, tanto alunos quanto educadores. “Nesse período de incubação do Porto Digital, estamos aprendendo mais sobre negócios, sobre modelagem de negócios e como trabalhar o marketing”. A partir deste conhecimento, Vinnicius e Rafael podem oferecer cursos e consultorias a instituições de ensino - e, assim, pretendem ajudar as escolas a se tornarem mais digitais, inclusive com “gamificação”, ou seja, utilização de jogos para ensino.
Vinnicius explicou que essa estratégia ajuda a motivar os estudantes, inclusive contou um exemplo de como isso já funcionou bem. “Fizemos um workshop em uma escola pública de Recife, onde a educadora ficou muito feliz, e viu grande potencial com isso. Anteriormente, eu tinha ensinado aos alunos como eles poderiam programar, criar um joguinho simples através de uma ferramenta on-line”, exemplifica Vinnicus. “O número de alunos que estavam indo para as aulas remotas era quase nenhum. Porém, quando eu trouxe essa proposta dos jogos para dentro da escola, o nível de alunos subiu: eram cerca de 30 alunos na a aula”, contou Vinnicius.
Assim como acontece em um videogame, o sucesso em uma fase cria novas oportunidades para o jogador. Foi o que aconteceu com Vinnicius, que já sentiu impactos na própria vida.
“Conseguimos dar várias entrevistas - conversamos com a revista Forbes, por exemplo. Participamos de um especial de empreendedorismo social na educação. Fui aprovado em uma academia de liderança da Colômbia, que é o LALA Academy, ou Latin American Leadership Academy.”
Os benefícios também impactaram toda a equipe envolvida no projeto, seja através de investimento ou de conhecimento. Segundo Vinnicius, investidores já o procuraram, pelo fato de estar conectado ao British Council. E os companheiros dele se tornaram mais versáteis. “A nossa equipe conseguiu crescer multidisciplinarmente. Iniciamos como programadores e designers. E agora nós somos CEOs, pessoas que trabalham com o financeiro. Então, pelo fato também de estarmos concluindo o Ensino Médio agora, tudo isso foi uma experiência muito surreal”, definiu Vinnicius.
Fase 3: O impacto social positivo
Eis a grande diferença entre um videogame e o empreendedorismo: enquanto o sucesso em um jogo não cria muito impacto para a sociedade, os bons negócios podem deixar um legado importante para a população geral.
Rafael conta que já percebeu isso com o Mangue & Beach, quando levava o jogo para as feiras. Ele via que a maioria das pessoas não sabia fazer coleta seletiva, mas aprendia logo depois de jogar. Portanto, Rafael vê uma sociedade cada vez mais consciente, mas com um problema: “A própria comunidade está se conscientizando mais, mas o Poder Público infelizmente não está acompanhando essa tendência”.
Para Vinicius, o principal impacto social ainda depende da inclusão digital. “Quando falamos de transformação digital, precisamos colocar esse I de inclusão, porque há muitas pessoas que não têm acesso a outras ferramentas. Ou têm acesso apenas aos dados
Mas Marcos Primo avalia que os garotos nem enxergam todo o impacto que produzem.
“Eles estão fazendo um papel importante e nem têm ideia: dão grande apoio à cultura local e são exemplo também. Os colegas deles vão ver e falar 'o Vinnicius conseguiu, então a gente pode conseguir também’".
Marcos acredita que esse apoio para a cultura local funciona como um diferencial importante para os dois grupos. Afinal, ambos estão em uma área com concorrência pesada, mas possuem um nicho e sabem explorá-lo.
“São dois grupos com futuro promissor, mesmo em uma área que é difícil brigar, com gente de formação pesada e condição boa. Mas eles não querem fazer games diferentes do que fazem. É uma cultura que vende, como a relação entre Manguebeat e Chico Science, que, às vezes, é até mais valorizado por quem é de fora. E o Cordel já se aproximou de coisas voltadas à Educação, nessa pegada cultural educacional. Eles estão reforçando coisas que estavam se perdendo na cultura local”, lembrou Marcos.
E toda essa bagagem cultural se torna uma mão de obra qualificada e única para o mercado brasileiro, de acordo com Marcos. “Você não consegue aumentar os recursos humanos qualificados sem fazer inclusão. E a inclusão não é só uma questão humanitária: é uma questão econômica. Se você der treinamento e recursos, eles chegam. Pode demorar um pouco. Mas chegando, a contribuição deles é única”.