Jovens de periferias conhecem bem a “sevirologia”, mas foram além. Eles aprenderam a empreender com o Nave Lab CriaAtivo, projeto apoiado pelo DICE, e ganharam espaço no mercado de trabalho.
Charles Siqueira conhece bem um padrão das periferias: jovens que desejam produzir conteúdo cultural precisam superar pressão, preconceitos e falta de estrutura para ganhar espaço no mercado de trabalho. É preciso se dedicar e improvisar muito. Segundo ele, existe até um nome para isso: sevirologia.
É a arte de “se virar” para conseguir empreender, trabalhar, produzir… enfim, viver.
Mas Charles é coordenador de um projeto que tenta mudar esse modelo. O Nave Lab CriaAtivo dá recursos técnicos, conhecimento e estrutura para que jovens possam se firmar no mercado de trabalho, inclusive como empreendedores. Para isso, eles podem receber treinamento nas áreas de fotografia para cinema, edição de vídeo, produção de games e programação para web, por exemplo. Tudo de forma gratuita e com metodologia desenvolvida em parceria com a Loughborough University, de Londres. Charles acredita que o objetivo do Nave Lab CriaAtivo foi atingido aos poucos.
“A ‘sevirologia’ é a arte do empreendedor cultural. Então, já era uma coisa que os jovens da periferia trabalhavam na vida deles. A ideia era transformar em uma força motriz maior para que pudessem trazer as conquistas. E essas conquistas aconteceram a partir de editais que ganharam e também de empregos melhores”, comenta Charles.
Essa história começou com a CriaAtivo Film School, que também era coordenada por Charles, na qual já oferecia qualificação profissional introdutória para funções relacionadas ao mercado cinematográfico. Na grade curricular havia cursos de direção, fotografia, roteiro e montagem - todos realizados na Nave do Conhecimento de Triagem. O projeto se consolidou e cumpriu sua missão, mas faltava dar um passo a mais, para que a inclusão de jovens de periferias fosse completa.
Protagonistas
Charles Siqueira é pernambucano, cresceu na Bahia e mora no Rio de Janeiro. É coordenador executivo no Instituto Cultural Pólen, que facilita a realização de projetos de impacto social positivo, com foco na economia criativa inclusiva. Possui formação em Letras, Dança Contemporânea e Filosofia.
Fabricio Mendes nasceu no Rio de Janeiro e se formou em Direito na PUC. Mudou-se para Londres e fez mestrado em empreendedorismo social no Goldsmiths, University of London. É cofundador da CriaAtivo Film School. Atualmente mora em Londres, onde faz doutorado em Design na Loughborough University.
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Produtora-escola
Fabricio Mendes, outro coordenador do NaveLab, foi quem percebeu essa necessidade. “A ideia foi: precisamos criar uma ‘produtora-escola’ e não só uma escola. Precisamos fazer essa transição para o mercado, porque este está cheio de redes que, por sua vez, estão fechadas. O audiovisual é muito elitizado por causa dos equipamentos, então precisamos ter equipamentos de propriedade coletiva.”
Com a ideia na cabeça, Fabricio partiu para a prática. Ele morava em Londres e iniciou o contato com o British Council, que recomendou a criação de um módulo de empreendimento. “Conversamos e adaptamos essa ideia de empreendedorismo com uma metodologia que pudesse ser útil para transformar boas ideias em ações inteligentes. Tinha uma linguagem adaptada para aquela realidade do jovem periférico, que está no ecossistema da cultura, e não no ecossistema da inovação”, explica Fabricio.
Assim surgiu o Nave Lab CriaAtivo, com um desafio maior. “A pegada já não era tanto a qualificação, mas, sim, o empreendedorismo. Trabalhamos a questão da geração de renda, pensando em duas frentes: a empregabilidade e o empreendedorismo em si. Posso não querer ser um empreendedor autônomo, mas eu quero também ter uma noção maior de como eu vendo o meu próprio saber. Como eu me torno interessante para que uma produtora me contrate, por exemplo”, explica Charles.
Aos poucos Charles e Fabricio perceberam que não seria tão fácil despertar o interesse dos jovens no assunto. Mas “se viraram” e encontraram soluções.
Adaptações
A primeira dificuldade surgiu devido ao público-alvo do projeto, que é voltado à população periférica que sofre com preconceitos diversos na sociedade. O ambiente do empreendedorismo é exatamente o oposto. “Estamos falando de uma população periférica, negra, gay ou mulher, lidando com um universo que é majoritariamente branco e masculino”, explica Charles.
Além do preconceito externo, havia também uma pressão dentro da periferia. “A ideia do empreendedorismo é vista muito como uma ferramenta do opressor, do rico da Zona Sul, do branco, que basicamente diz: ‘A precariedade agora é oficial e vocês se virem para serem empreendedores de vocês mesmos’”.
A crise econômica e a reforma trabalhista fizeram com que a flexibilização das regras do trabalho formal fosse vista como solução no Brasil. O NaveLab queria mostrar para os jovens que isso podia ser diferente. Que empreender ou saber divulgar o próprio talento podia ser vantajoso e que os jovens poderiam ser empresários de sucesso se desejassem, e não apenas trabalhadores informais. Não foi fácil, mas surgiram boas ideias.
“Chamamos um rapaz, que era um homem negro, de estética rastafári, filho da periferia e de projetos sociais. Um histórico de sucesso muito curioso, inclusive no mercado financeiro, contra todos os prognósticos que ele quebrou, de preconceitos mesmo. Essa identificação de encontrar um mentor de empreendedorismo que fale a nossa língua foi muito bem aceita pelos jovens. Facilitou a nossa vida quanto a quebrar esse paradigma de arma de opressor, de ferramenta de novas dominações”, comemorou Charles.
Falar a língua da periferia, não do ambiente de negócios, era uma necessidade para avançar com o grupo. “Você não pode trazer muitos conceitos em inglês, precisa traduzi-los. Por exemplo, para ‘brainstorm’, você usa ‘toró de ideias’, ‘chuva de ideias’, você dá um jeito. Se não, isso tudo fará com que eles vejam o empreendedorismo como algo que não é para eles”, analisou Fabricio.
Os coordenadores conseguiram prever essas dificuldades. E outros problemas ao longo do processo fizeram com que eles se adaptassem e realizassem mudanças. Por exemplo: nas primeiras turmas, os módulos técnicos foram introduzidos primeiro e depois seguiam os módulos de empreendedorismo. Essa disposição causou uma queda de frequência grande na reta final do curso. Para evitar esse problema, os módulos passaram a coexistir.
Outra solução foi mudar o conteúdo sobre empreendedorismo. Charles e Fabricio perceberam que os jovens se interessavam muito pela busca por editais. Eles queriam saber como poderiam acessar programas de financiamento cultural. “O que faltava era dizer: o que precisa para acessar isso? Como ganhar R$50 mil para fazer um filme? Pode sonhar com isso? Precisa saber falar inglês? Eu sentava e contava como era o caminho. E acho que o nosso movimento tem que ser esse”, opina Fabricio.
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Para mais informações sobre empreendedorismo social e criativo no Brasil, consulte nosso Mapeamento.
Mapeamento do Empreendedorismo Criativo e Social no Brasil