Com apoio do British Council, PretaHub reformulou e desenvolveu o Afrolab, projeto que aumenta a diversidade em um ambiente de negócios desigual
A maioria de nós associa o verbo “hackear” a um crime virtual. Mas essa não é a definição correta. O dicionário Michaelis define que um “hacker” pode ser qualquer indivíduo que consegue um atalho inteligente para obter um novo recurso. No mundo da computação, “hackers” já foram muito importantes para descobrir ferramentas úteis e pouco exploradas. No mundo do afroempreendedorismo, há mulheres que estão “hackeando” o sistema para fazer com que a sociedade tenha acesso a uma diversidade cultural rica e pouco aproveitada.
A principal responsável por isso é Adriana Barbosa, criadora da PretaHub, iniciativa que envolve projetos importantes para o afroempreendedorismo, como Feira Preta e Afrolab. Foi ela quem cunhou o termo “hackear o sistema” para definir o impacto causado por empresas que ela apoiou. Ana Cláudia Silva, que recebeu esse apoio do Afrolab, explica como acontece essa transformação: “Damos acesso a uma cultura afro, que não está no mercado geral. Estamos levando acesso a algo que não era possível antes. Acho que isso é o mais importante: acessar a diversidade. É o tal do ‘hackear’ o sistema, que a Adriana fala. Estamos ‘hackeando’ o sistema paulatinamente, mas com uma frequência muito constante”, diz Ana Cláudia, que desenvolveu a Afra Design, empresa que virou referência em papelaria étnica.
A missão de transformar o sistema é difícil, mas tem enorme potencial. A pesquisa “A Voz e a Vez - Diversidade no Mercado de Consumo e Empreendedorismo” (2019), encomendada pelo Instituto Feira Preta, com apoio do Itaú e desenvolvimento do Instituto Locomotiva, comprova a dificuldade e as oportunidades. O problema acontece porque, até 2018 (ano da pesquisa), 82% dos afroempreendedores não tinham sequer CNPJ. E 57% deles acreditavam que pessoas negras sofrem preconceito quando tentam abrir um negócio no Brasil. Isso se reflete em um dado chocante, a diferença de rendimento mensal dos empreendedores por raça. Os negros ganham, em média, R$ 1420. Os brancos recebem o dobro, R$ 2827.
A pesquisa mostra ainda o potencial desse mercado: se os consumidores negros daqui formassem um país, seria o 11º do mundo em população e o 17º em consumo. Seria uma nação que atualmente já movimenta R$1,7 trilhão por ano.
A PretaHub tenta cumprir a missão de aproveitar esse potencial de diversas formas. O Afrolab é uma das principais frentes desse instituto e recebeu apoio do DICE (Developing Inclusive and Creative Economies), programa do British Council. Com isso, Adriana passou a se dedicar integralmente ao que sabe fazer de melhor: capacitar outras empreendedoras negras.
A “invasão” ao sistema
Tudo começou com um espaço para venda de produtos afro, a Feira Preta, em 2001. Aos poucos, a iniciativa evoluiu para programas de formação de empreendedores, mas houve uma grande pedra no caminho. “Foi quando completamos 15 anos e, em uma das feiras, tínhamos uma expectativa de público de 15 a 20 mil pessoas. Mas não levamos nem quatro mil pessoas. Fracassamos, quebramos financeiramente e começamos a fazer um processo para reestruturar a Feira”, conta Adriana.
Ela sabia qual era a maior dificuldade: não havia sustentação financeira durante o ano inteiro. A captação de recursos era feita a cada projeto, mas nem todos conseguiam financiamento. Era preciso reformular a Feira Preta e transformar em algo maior. A criação da PretaHub uniu todos os projetos e criou um alcance maior.
A reformulação do Afrolab foi uma das soluções. Com apoio do DICE, Adriana desenvolveu uma metodologia exclusiva, em parceria com a Coventry University (Inglaterra). “Mapeamos as lideranças de alguns estados e veio uma pessoa da Coventry University para trazer um pouco dessa bagagem também. Passamos uma semana toda em processo de cocriação, no desenvolvimento do conceito, da metodologia e na adaptação daquilo que veio do Reino Unido. Fizemos tudo a quatro mãos”, conta Adriana.
Depois dessa parceria, o projeto de Adriana conseguiu crescer rapidamente. “Começamos com quatro estados. Depois, conseguimos sete estados. E, no ano retrasado, fomos para 11 estados. Em janeiro de 2020, replicamos a metodologia do Afrolab na Bolívia, a nossa primeira experiência internacional”, conta ela, citando que a metodologia foi aplicada também para a cultura boliviana e indígena, em parceria com a embaixada do Brasil na Bolívia.
Como fica o sistema “hackeado”?
Adriana acredita que o Afrolab criou três impactos principais: o afroempreendedorismo ficou mais qualificado; houve um aumento de renda; e há mais “senso de comunidade”, porque antigamente os empreendedores brigavam entre si, pois apresentavam sempre os mesmos produtos. “Chegavam lá na Feira Preta e ninguém vendia, era uma briga. Então, começamos a qualificar a forma de eles fazerem o produto com novas referências estéticas, ampliar o repertório, produzir novos produtos e melhorar o preço e o atendimento. E, hoje, recebemos os empreendedores do Brasil inteiro na Feira Preta”, comemora.
Mas as alunas de Adriana percebem que o impacto do Afrolab vai além disso. É o caso de Aline Chermoula, por exemplo. A criadora do Chermoula Cultura Culinária vê que a PretaHub contribui para o networking, aumenta a autoestima dos empreendedores e tem um papel fundamental na luta contra o preconceito racial. “Eu acho que a Adriana hoje, no momento em que nós estamos, é uma das principais figuras públicas que trabalham o rompimento do preconceito racial. Ela conseguiu ocupar esse lugar de representatividade. E, uma vez que a Adriana vai ocupando espaços, vai nos levando para esses espaços. E a sociedade começa a nos olhar com outros olhos. O movimento de transformação vai acontecendo, pouco a pouco”.
Aline conhece Adriana desde a primeira edição da Feira Preta. Depois, elas seguiram caminhos diferentes, mas se reencontraram quando Aline virou mãe e passou a focar no desenvolvimento do próprio negócio. Ela participou de diversas feiras, vendeu produtos e até deu palestra. Quando fez o Afrolab, já tinha um grande conhecimento prévio, afinal se formou em Gastronomia e sempre trabalhou na área. Mas foi impactada pelo curso mesmo assim: “Enquanto tinha uma pessoa falando o que eu já sabia, eu ia refletindo sobre as ações que eu praticava no meu negócio. E percebi que tinha algumas lacunas. Desde então, tenho buscado saná-las. Por exemplo, quanto à questão de ter um espaço, pois eu cozinhava em casa’”, conta Aline.
Para Ana Cláudia, que não tinha formação prévia, o Afrolab foi ainda mais importante. Ela era professora e precisou superar um trauma em 2017, pois foi agredida em sala de aula. “Adoeci, tive depressão, ansiedade e precisei me afastar das atividades. E eu falo que empreender, para mim, veio como um processo de cura”, conta ela.
A readaptação da carreira aconteceu com a criação da papelaria étnica Afra Design, que teve grande influência dos cursos feitos com Adriana. “Eu me descobri como afroempreendedora, que eu acho que vai além do empreendedorismo. Eu fiz cursos mais focados no empreendedorismo geral, mas quando eu tive essa oportunidade de fazer uma imersão com a Adriana, junto com afroempreendedores, eu descobri que tinha como colocar a minha impressão, a minha identidade como mulher preta, dentro do meu negócio. Eu sou empreendedora por engajamento. Isso eu aprendi na PretaHub”, relata Ana Cláudia.
Mas Aline e Ana Cláudia sabem que só engajamento não basta. Elas também conseguiram aprender o que precisavam para que as empresas fossem lucrativas. A Chermoula cresceu 75% em 2020, mesmo com a pandemia de Covid-19. A Afra Design teve um faturamento acima de R$100 mil e espera um crescimento de 20% em 2021.
E os números só refletem algo que é imensurável: o tamanho do impacto que o afroempreendedorismo provoca no sistema.