Silvana Trucss transformou sua ideia em realidade com ajuda da aceladora ANIP, apoiada pelo British Council.
Até 2016, Silvana Trucss trabalhava na área da Saúde. Moradora da Zona Leste de São Paulo, tinha formação em hemoterapia, área da medicina que usa o sangue como tratamento de diversos problemas. Tudo mudou quando ela teve uma ideia inovadora e inventou a calcinha Trucss para mulheres transexuais.
“Eu atendia muitas pacientes trans realizando cirurgia nos rins. E isso me chamou a atenção. Decidi criar essa calcinha ao descobrir que elas faziam a cirurgia por ficarem muito tempo ‘aquendadas’ - ou seja, prendendo a genitália masculina. Então, resolvi fazer a calcinha, com uma patente de invenção”, conta Silvana.
Normalmente, as transexuais usam fitas para esconder o órgão genital. Silvana criou a calcinha que vem com um funil na parte interior. Com isso, segundo a criadora, é possível “aquendar” (esconder) de maneira prática, rápida e confortável.
Mas, para ter sucesso no mercado de trabalho, é preciso mais do que uma boa ideia. Silvana passou por um longo processo até consolidar o produto. A primeira dificuldade surgiu porque ela não tinha nenhum conhecimento sobre tecido ou costura. “Meu primeiro protótipo ficou muito feio. Mas era o que eu tinha para mostrar para uma costureira o que eu queria. Falava, mas ninguém me entendia”, lembra Silvana, revelando que a primeira peça é guardada com carinho por sua mãe.
Depois que o produto foi desenvolvido, aperfeiçoado e patenteado, surgiu outro desafio: a profissional da Saúde precisava virar uma empresária. Silvana não tinha conhecimento sobre empreendedorismo, mas formalizou a empresa Trucss em 2017 e foi crescendo aos poucos. A maior dificuldade era atingir o público-alvo. A partir da Articuladora de Negócios de Impacto da Periferia (ANIP), projeto que conta com apoio do British Council, através do programa DICE (Developing Inclusive and Creative Economies), ela foi selecionada para participar da 3ª turma NIP, onde teve acesso a uma ajuda importante no processo empreendedor.
O que é um NIP?
Trata-se de um negócio de impacto da periferia (NIP). Este tipo de empreendimento possui potencial de impacto socioambiental, sobretudo em seu próprio território e também em sua comunidade. O objetivo é solucionar ou auxiliar no caminho para o enfrentamento de problemas sociais de alta complexidade.
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“A ANIP veio em uma fase importante da marca, porque eu já estava comercializando com meu site, mas não conseguia atingir o público-alvo. Por eu ser uma mulher cisgênero [cuja identidade de gênero corresponde ao gênero atribuído no nascimento], não tenho muito contato com o público transgênero em geral”, explica Silvana.
Após os conselhos e aprendizados adquiridos com a ANIP, a empreendedora fez um “minicontrato” de porcentagem de vendas com influenciadoras trans. Elas divulgaram os produtos nas redes sociais e, a cada cupom de desconto que alguém usava no site, era disponibilizado um valor na conta da influenciadora.
A ANIP
Silvana não é um caso isolado. A ANIP contribui com diversos negócios de periferia que possuem esse potencial de inovação. “Nós, da periferia, somos um povo potente, inteligente, com conhecimentos empíricos e ancestrais, que tem a inovação na veia”, define Marcelo Rocha, mais conhecido como DJ Bola. Ele idealizou e, atualmente, coordena a ANIP.
DJ Bola listou uma série de projetos com essa “inovação na veia” da periferia: desde a gastronomia como transformação social; produtoras de filmes que potencializam o poder artístico, literário e cultural da quebrada; até empresas que fazem reciclagem de produtos de salão de beleza, além de muitas empreendedoras que fortalecem o empoderamento das mulheres pretas.
A ANIP surgiu em 2018, mas, na prática, a história começou há mais de 20 anos, em 1999. Foi quando uma organização chamada A Banca emergiu no Jardim Ângela, considerado um dos bairros mais violentos de São Paulo na época. A proposta inicial era organizar eventos de hip hop na região para os jovens. E depois veio a ideia de usar a cultura local para gerar inclusão e empreendedorismo.
Para dar esse passo, o projeto A Banca precisou de apoio e contou com parcerias especiais. O British Council, a Fundação Getúlio Vargas, a aceleradora Artemisia e a startup Global Urban Design (GUD) contribuíram para a formação e o crescimento da ANIP. Jacqueline Bleicher, fundadora da GUD, participou do Fórum da ANIP em 2019 e afirmou que “Foi muito positivo e impactante”. Ela conheceu diferentes iniciativas da periferia e ficou impressionada com o nível de inovação presente nos projetos dos empreendedores.
“Eles se tornaram inovadores devido às circunstâncias desfavoráveis. Começar um negócio é fácil quando se tem capital financeiro e investidores. Criar e sustentar um negócio é muito mais desafiador quando se tem só suor e capital social. O foco social e o apoio da comunidade fazem esses empreendedores serem únicos. Como se costuma dizer, a necessidade é a mãe da invenção", destaca Jacqueline.
Inicialmente, a ANIP era uma aceleradora. Agora, é uma articuladora que atua em quatro eixos: mobilização com encontros on-line e pelo Fórum de Negócios de Impacto da Periferia, para demonstrar cases de sucesso apoiados pela A Banca; promoção do Lab NIP, que é um processo de formação rápida para desenvolvimento de negócios; organização e compilação de dados que podem servir para entender a temática de impacto da periferia; e organização de investimentos e créditos financeiros para negócios promissores.
Com o apoio do DICE, DJ Bola recebeu treinamento para administrar a ANIP de maneira prática e eficaz. Ele destaca principalmente o contato que teve com pessoas de diferentes setores e outros países, além das lições sobre administração. “Aprendi muito no processo de monitoramento e avaliação, porque eles são mais exigentes no relatório e na prestação de contas”, lembra o coordenador da ANIP.
E, segundo ele, ainda existe um valor mais importante e simbólico ao sair da periferia e participar de um projeto do British Council: “É uma relação em rede internacional. Então, levar essa narrativa de impacto de periferia para o outro lado do mundo é muito importante. Há até um certo orgulho nisso”.
Crescimento da Trucss
Jacqueline, da GUD, lembra que conversou com Silvana após o Fórum da ANIP. "Pude dar conselhos personalizados para o negócio específico dela. Sugeri começar com um site Etsy para atender sob encomenda, em vez de incorrer no custo de manter um estoque”.
Agora, a loja virtual de Silvana está consolidada. Além das coleções de lingeries, ela também desenvolveu biquínis e maiôs, sempre atenta às necessidades das clientes: “Eu fui criando outras modelagens a pedido das meninas mesmo. Questionavam ‘por que você não faz assim? Eu preciso para isso. Ou para aquilo’. E eu comecei a fazer outras modelagens. Tenho até moda praia, porque é necessidade delas. Eu costumo brincar que eu não sigo tendência. A minha tendência é o que as minhas meninas precisam. E eu vou criando em cima disso”.
Perguntada sobre qual foi o maior impacto da calcinha Trucss, Silvana afirma que é imensurável, porque "salva vidas”. E revela uma curiosidade: apesar do produto ser focado no conforto, muitas mulheres trans ainda priorizam a estética. “Algumas não entendem o lado de salvar vidas, porque elas pensam mais na estética. Elas já estão acostumadas a sofrer e querem só a estética. Mas eu sinto a necessidade de reeducar isso”, conta Silvana.
O impacto é imensurável, porque salva vidas.
E já existe um projeto para gerar esse impacto de reeducação. Silvana lançará a coleção “Sensações”, que será voltada para o conforto das mulheres trans. “Elas estão acostumadas a se mutilar e, quando veem algo que é novo no mercado, por mais que traga soluções para o que elas precisam, ainda ficam desconfiadas. Então, faremos o ensaio para quebrar um pouco esse tabu. Falaremos que as sensações são importantes. Afinal, você tem que se sentir bem para trabalhar e estudar”.
Silvana também acredita que é uma “questão de tempo” para que a Trucss vire uma rede de lojas. No final do ano passado houve um teste para criação de uma loja física. Ela abriu o empreendimento na Rua Augusta, em São Paulo, uma região importante para o público-alvo, e considera que obteve sucesso por cerca de dois meses. Mas preferiu fechá-lo por causa da pandemia de Covid-19, afinal, os comércios estão com restrições de funcionamento para evitar aglomerações. Futuramente, a empreendedora planeja reabrir a loja física.
Entre os planos para o futuro também está o lançamento de uma nova coleção de lingeries e um passo ainda mais relevante: “Vou tentar incluir minhas peças no SUS [Sistema Único de Saúde], gratuitamente. Afinal, é uma forma de as meninas se cuidarem também. Com o incentivo das minhas peças, acho que elas vão procurar o SUS para falar sobre hormonização. Eu estou no início da pesquisa sobre as licitações e o funcionamento”, revelou Silvana.
Esse é o potencial de uma inovação surgida na periferia: vidas podem ser salvas por quem conhece a realidade das minorias e sabe exatamente como ajudá-las.