Por David Harrold
Publicado originalmente no Pioneers Post em 16 de julho de 2020
No alto da cidade de Belo Horizonte, extensões coloridas de casinhas se apegam às encostas das montanhas. É o Aglomerado da Serra — uma das maiores favelas brasileiras, onde as questões socioambientais são sentidas com urgência. Lá Da Favelinha é um centro cultural localizado no coração dessa comunidade. Atua numa ampla gama de projetos, capacitando residentes que se identificam como não-brancos a se expressarem de forma criativa, gerando receita com suas atividades. Exemplo desse processo é a Remexe, linha de roupas não binárias feitas inteiramente de materiais reciclados. Por meio de uma colaboração — Garota Hacker — entre Lá Da Favelinha e a empresa de artes interativas ZU-UK, com sede em Londres, a Remexe atingiu um público e um mercado globais.
A Remexe tem um modelo de negócios que costura ideais de sustentabilidade, direitos das mulheres e da comunidade LGBTQ e empoderamento econômico, buscando colocá-los em prática. Seus estilistas — predominantemente residentes locais que se identificam como mulheres não brancas —, fazem designs orgulhosos e expressivos com roupas usadas ou descartadas. “É uma abordagem em que usamos o que já temos, o material é pura criatividade”, diz Jorge Lopes Ramos, cofundador da ZU-UK. “É olhar para algo que já existe e reinventá-lo, não apenas para agregar valor, mas para agregar visão. Mostra que podemos reutilizar o que temos para transformar a vida das pessoas”. Essa transformação, no entanto, é projetada para se dar por meio de parcerias, não de caridade. Os lucros com a venda de cada peça são divididos igualmente entre as estilistas e a Garota Hacker, em um sistema baseado no respeito mútuo, que visa promover a autossuficiência.
As coleções Remexe culminam na Favelinha Fashion Week, onde os próprios estilistas exibem seus trabalhos em desfiles interativos, sendo estimulados a se expressarem pela celebração de identidades que transcendem as normas culturais brasileiras. Persis-Jade Maravala, do ZU-UK, diz que tudo começou como um esforço “para se apropriar da famosa semana da moda e colocá-la bem no coração da favela, onde as pessoas trabalham, vivem e resistem”. O projeto Garota Hacker viu o Remexe transcender suas origens, trazendo o coração da vida na favela para um público internacional, com vitrines em todo o Brasil e também em Londres e no Cabot Circus, de Bristol, no final do ano passado.
Apesar de todos os seus sucessos, a colaboração da Garota Hacker financiada pela DICE quase não aconteceu. Em uma visita inicial de avaliação, ZU-UK e La Da Favelinha descobriram que seus valores se alinhavam enormemente, mas enfrentaram dificuldades para identificar um projeto em que pudessem atuar juntos de modo efetivo. Até que, “bem quando já estávamos nos retirando, fomos convidados para ver um pequeno projeto de moda em andamento. Subimos, então, para esse pequeno ateliê, onde eles nos apresentaram o Remexe e explicaram sua abordagem sustentável, e isso instantaneamente se encaixou com nossa concepção de quem somos no mundo e do que queremos fazer”, lembra o co-fundador Persis-Jade. Um ano depois, a Remexe mais que dobrou sua receita e aumentou o número de designers de modelos de 4 para 20, alguns dos quais conseguiram abandonar seus empregos regulares para tocar o projeto em tempo integral.
Além disso, a colaboração da Garota Hacker gerou outras conexões entre ZU-UK, Lá Da Favelinha e várias organizações no Reino Unido e no Brasil. Isso permitirá que eles continuem o projeto no futuro, perseguindo o objetivo final de desenvolver o Remexe como “algo que pode abrir caminho no sentido de reimaginar como a indústria da moda poderia ser”. A indústria é responsável por até 10% das emissões globais de carbono. Isso significa que, em nível global, ela poderia dar ouvidos a algumas das lições sustentáveis que a Garota Hacker tem a oferecer.
O papel da ZU-UK na colaboração foi fornecer suporte prático e tecnológico, bem como um desenvolvimento mais holístico e personalizado de cada designer como artista. No entanto, durante o projeto, uma das principais prioridades era evitar a dinâmica de poder às vezes associada à cooperação entre o mundo desenvolvido e os países em desenvolvimento. À medida que a colaboração progredia, eles descobriram que, na verdade, seus colegas de favela tinham tanto, senão mais, a ensinar a eles do que o contrário. Com a dependência do Reino Unido nos artigos descartáveis e na “moda rápida”, há muito a ganhar com mais conhecimento e experiência na arte da reutilização. Para esse fim, os artistas do Remexe conduziram várias oficinas interativas com estilistas do Reino Unido antes de seu próprio desfile em Bristol, o que levou à criação da Re:Wurk, empresa-irmã da Remexe, com sede em Bristol.
Além das técnicas práticas, há lições profundas a serem aprendidas com a coragem de uma celebração tão orgulhosa da cultura LGBTQ + no Brasil, onde a homofobia e a transfobia extremas continuam sendo significativas, desde as favelas até o mais alto escalão do governo. Junto com a intolerância, há uma ameaça bastante real de violência: 445 LGBT+ brasileiros morreram como vítimas de homofobia em 2017, de acordo com a comissão de vigilância Grupo Gay, da Bahia. No entanto, mesmo em face dessa hostilidade, Persis-Jade relata que “nossos parceiros brasileiros demonstram tanta energia e dinamismo, e uma capacidade de resistir de uma forma tão amigável e alegre, que é algo que realmente inspira e nos mostra o que é possível”. É essa ampliação de possibilidades que dá nome ao projeto. Garota Hacker remonta a uma citação de Gilberto Gil, o popular músico brasileiro e Ministro da Cultura entre 2003 e 2008. “Quem são os hackers?”, ele perguntava, antes deresponder: “são os facilitadores da viabilidade, criando possibilidades por meio de técnicas e tecnologias”. O projeto demonstra possibilidades para todos nós, protegendo o meio ambiente e promovendo vozes de membros da comunidade global que, de outra forma, não seriam ouvidas.