Panelistas durante evento organizado pela ANDE com tema “Aplicando uma lente de gênero no apoio ao empreendedorismo” realizado em 29 de agosto de 2019 em São Paulo - Divulgação ANDE
Panelistas durante evento organizado pela ANDE com o tema “Aplicando uma lente de gênero no apoio ao empreendedorismo”, realizado em 29 de agosto de 2019 em São Paulo (SP) ©

Divulgação / ANDE

Por David Harrold
Publicado originalmente no Pioneers Post em 24 de setembro de 2020 

Nos últimos anos, temos assistido a uma crescente conscientização sobre os desafios enfrentados pelas mulheres em todo o mundo. O movimento #MeToo, desencadeado por um escândalo em Hollywood, evoluiu para debates e ações transformadoras em escala global. Mulheres de todas as esferas da vida estão compartilhando suas histórias de injustiça e sexismo cotidiano, e as barreiras que enfrentam — antes invisíveis — estão sendo iluminadas em todos as sociedades e áreas da vida.

Os empreendimentos criativos e sociais não fogem a essa tendência. Jodie Thorpe, Pesquisadora do Centro de Negócios e Desenvolvimento do Institute for Development Studies (Instituto para Estudos sobre Desenvolvimento) — onde as questões de gênero no desenvolvimento internacional têm estado no topo da agenda há 30 anos — naturalmente deu boas-vindas a esses debates. Mas, ela observa, “pergunta-se muito sobre como abordar essas questões na vida prática”.

No Brasil, tais questões são particularmente agudas quando se trata de mulheres empreendedoras. Discriminação e atitudes culturais profundamente enraizadas impõem enormes problemas práticos em termos de acesso a financiamento e apoio: para uma mulher no Brasil, o processo de abertura e manutenção de uma empresa é cercado de obstáculos. Mas agora esses obstáculos estão começando a ser reconhecidos e trabalhados. A equipe de Negócios e Desenvolvimento do Institute for Development Studies (IDS) tem apontado um “momento de crescente compreensão dessas normas excludentes”. O IDS procurou ajudar a estimular essas conversas, levando seus próprios aprendizados internacionais sobre empresa e gênero e “traduzindo-os para a realidadebrasileira” e trabalhando com empresários e investidores para apresentar soluções práticas.

Para efetuar essa mudança, precisavam atuar com uma organização que compartilhasse as questões de gênero como uma prioridade institucional, com influência entre investidores e empresários locais. Jodie relata que “o Brasil era um país onde tínhamos muitas interações pontuais há bastante tempo’, mas queríamos estabelecer uma presença mais sistemática. Sua colaboração com a Rede Aspen de Empreendedores de Desenvolvimento (ANDE, na sigla em inglês) foi precipitada por uma conexão pessoal. Uma ex-aluna do Mestrado em Desenvolvimento e Negócios Globais da IDS, que trabalhou pela ANDE no Brasil após se formar, manteve contato próximo com seus tutores pela rede de ex-alunos. Por meio dessa conexão, seus tutores tomaram conhecimento do trabalho e da influência da ANDE no Brasil. “A oportunidade de colaborar por meio do British Council, com foco em gênero e empreendimento, nos pareceu ideal”, disse Jodie.

ANDE é uma rede global de apoio a pequenas empresas em mercados emergentes, com quase 300 membros em todo o mundo, incluindo mais de 30 organizações ativas, operando no Brasil. Rebeca Yoshisato, analista do ramo da ANDE no país, diz que a parceria veio em um bom momento. A ANDE “sempre trabalhou com gênero por meio de várias iniciativas ao redor do mundo”, e essa era uma prioridade central de sua estratégia para 2019.

A parceria abarcou diversas organizações, envolvendo-as em uma série de eventos que buscavam estimular a discussão, a interconexão e a ação no ecossistema em debate. Nessas oficinas de um dia, representantes de empreendimentos criativos e sociais, investidores, incubadoras, aceleradoras e grupos de networking se reuniram para tratar de “fatores que criam e perpetuam a desigualdade de uma perspectiva de gênero, bem como algumas das estratégias que foram experimentadas e testadas em outras partes do mundo”, diz Jodie. Reunir essa ampla gama de organizações influentes com um grupo de empreendedoras para discutir estratégias viáveis foi algo, de fato, poderoso, uma vez que o ecossistema empresarial no ramo social e criativo pode parecer bastante difuso. Na opinião de Rebeca, “neste momento no Brasil, há muitas pessoas trabalhando nessa área, mas de forma um tanto isolada. Nós, por outro lado, estamos tentando construir algo coeso”.

No encerramento desses projetos maiores, os participantes foram convidados a selecionar questões que considerassem oportunas para uma exploração mais profunda, por meio de siminários online interativos. A parceria, então, forneceu suporte contínuo ao longo do ano para cerca de 100 empresas sociais e criativas por meio dos chamados “webinars”. O nível de envolvimento, diz Jodie, foi encorajador: “a maioria dos participantes reservou um tempo para fazer um acompanhamento consistente.”

Um tópico que surgiu nos eventos e webinars foi a dificuldade de preencher a lacuna que impede uma melhor comunicação entre mulheres empreendedoras e investidores. Para enfrentar barreiras como o preconceito inconsciente em relação a negócios capitaneados por mulheres, eles dobraram seus esforços no sentido de influenciar a comunidade de investidores, no que Jodie descreve como “uma atuação típica de advogados de defesa”. Isso incluiu trabalhar em estreita colaboração com a equipe de investidores de impacto da ANDE. Além disso, recorreram aos contatos da IDS no Reino Unido, onde um evento para investidores foi realizado em dezembro, numa tentativa de aumentar o reconhecimento internacional dos empreendimentos brasileiros.

Tanto Jodie quanto Rebeca concordam que, tendo em vista a escala e a complexidade das questões relacionadas a gênero no Brasil, os desafios são enormes. Jodie diz: “A dificuldade de falar sobre gênero é que diferentes indivíduos têm experiências muito diferentes — existem outras divisões, e essas divisões se cruzam”. Com a enorme diversidade étnica e cultural do Brasil e a grande desigualdade de renda, a disparidade na experiência de mulheres de origens diferentes em todo o país dificilmente pode ser ignorada. Rebecca concorda, observando que, “para as mulheres brancas, de classe média, ou para negras que vivem nas favelas, temos que pensar sobre esses temas de maneiras muito diferentes”. Diante dessas complexidades, do longo precedente histórico do preconceito de gênero e da atual reação populista na política brasileira, Jodie adota uma atitude realista quanto ao ritmo da mudança. Mas é otimista quanto a transformações a longo prazo: “a verdadeira mudança não será conquistada com uma oficina ou por um projeto de um ano de duração; no entanto, propor esses debates é buscar respostas para algumas das perguntas certas, e espero que essa comunidade possa continuar interagindo, mesmo sem nossa facilitação direta.”

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